Certificar Sem Mudar a Cultura da Empresa
A partir da década de 70, iniciou-se um processo mundial no qual compreendia-se que as empresas têm um papel importante na construção de uma sociedade saudável. Temas como saúde ocupacional, segurança do colaborador, diálogo com stakeholders, impacto positivo no contexto local, qualidade dos serviços e produtos passaram a ser fatores que agregavam valor à empresa.
As pesquisas revelaram um número alarmante de dados que mostravam que muitas pessoas desenvolviam problemas emocionais graves quando trabalhavam numa empresa doente. Aos poucos, percebeu-se que as empresas poderiam gerar estruturas doentias que formavam CEOs doentes, diretores doentes, executivos doentes, gerentes doentes, supervisores doentes, líderes doentes e, por fim, uma empresa inteira que vive diariamente sintomas da mesma doença. Nessas empresas, os lugares mais frequentados pelos colaboradores não são as salas de recreação, lazer ou locais que estimulam a criatividade, mas os centros médicos.
Na outra ponta, detectou-se outro problema com relação às empresas. Muitas não estabeleciam nenhuma relação de beneficio e impacto positivo com as comunidades locais onde estavam inseridas. Pelo contrário, algumas usavam os bens naturais da região e não tinham nenhum programa de cuidado, tratamento de água, tratamento dos resíduos, reflorestamento de áreas que foram utilizadas por anos e até mesmo programas educacionais que se preocupam com o desenvolvimento social e intelectual dos cidadãos que residiam no entorno da empresa. É bem verdade que sempre existiam exceções.
Ainda que muitas empresas continuem atuando no modelo antigo, existe atualmente uma consciência crescente de que essas empresas não vão sobreviver por muito tempo. Em alguns países da Europa, se a empresa não consegue provar que sua atuação na região traz benefícios inteiros à comunidade, ela não consegue fechar determinados contratos. Um outro exemplo é a empresa que usa mão de obra escrava ou que não tem uma política séria de reuso ou destino correto dos seus insumos. Ela não é bem vista no mercado e na sociedade. Os países industrializados membros da Convenção do Clima da ONU anualmente têm que apresentar relatórios de emissões de gases de efeito estufa.
Todos esses fatos fizeram com que surgissem várias certificações que, em princípio, ajudariam as empresas a transitar de práticas doentias para práticas saudáveis; práticas insalubres, para práticas salubres, práticas egoístas para práticas coletivas; práticas insustentáveis para práticas sustentáveis. Dentro desse contexto, também poderíamos, por exemplo, situar as certificações da ISO. Falando, especificamente, do cenário do Brasil e de alguns outros países, as certificações sofrem uma crítica por correrem o risco de se tornarem apenas oferta de um serviço econômico. Em princípio, uma empresa certificada em ISO deveria ter processos e estruturas saudáveis nos quesitos que foi certificada.
A questão é que como as certificações se tornaram a condição para fechamento de contratos, importação de produtos, execução de determinados serviços, processo eliminatório em licitações e ponto forte para vencer a concorrência, elas também passaram a ser vistas como grande negócio para empresas de consultoria que se especializaram em preparar outras empresas para serem certificadas nas diferentes ISOs, dentre elas, 9001 (Qualidade), 14001 (ambiental) e OSHAS 18001 (Segurança). Na linguagem popular, juntou-se a fome com a vontade comer. De um lado, empresas de consultoria que ensinam a criar evidências e preparam legalmente a empresa sem mudar sua cultura, e de outro, diretores e CEOs que não querem mesmo ter o trabalho de mudar a cultura da empresa e implementarem as mudanças estruturais.
Falando a partir da Sustentabilidade Inteira, um problema grave está posto nessa relação entre empresas de consultoria de certificações para ISO e as empresas que contratam o serviço. Ambas não querem implementar as mudanças estruturais e transformar a cultura organizacional da empresa. Com isso, muitos consultores ensinam alguns colaboradores a preencher bons relatórios e a seguir o passo a passo detalhado para a empresa ser certificada. Alguns setores da empresa dão informações, mas não têm a mínima ideia das razões pelas quais estão fornecendo determinados dados. Alguns problemas podem ocorrer dessa relação. A empresa sempre dependerá do consultor porque eles não são educadores e não formam os colaboradores da empresa. Muitos não preparam a empresa para andar com as próprias pernas. Dessa forma, a empresa é certificada, mas não muda sua cultura insustentável.
Isso significa dizer que antes mesmo da certificação, a empresa precisa ser preparada. O processo precisa começar com o diretor e atingir todos os escalões da empresa. A diretoria precisa conhecer o conteúdo da certificação e ter uma consciência clara sobre qual é a missão da empresa, quais são as suas virtudes e quais são seus problemas crônicos. É possível trocar os móveis de uma sala e não mudar em nada a relação que os moradores da casa têm com o novo recinto. Os móveis são novos, mas os usuários continuam usando como se fossem velhos. Assim, é ser certificado em qualquer norma de segurança, ambiental e de qualidade sem assumir um trabalho continuado e sustentado de mudança profunda da cultura da empresa.
Dell Delambre (WTS Coach e Consultor em Sustentabilidade)
Pagotto, Érico Luciano. Greenwashing: os conflitos éticos da propaganda ambiental. Tese de doutorado, USP, 2013.